Camarilha dos Quatro

Revista de crítica musical.

Kasai Allstars – In the 7th Moon, the Chief Turned into a Swimming Fish and Ate the Head of his Enemy by Magic (2008; Crammed, EUA/Congo)

Residentes em Kinshasa, no Congo, o Kasai Allstars reúne vinte e cinco músicos oriundos de cinco diferentes etnias locais, cada qual com sua própria língua e tradição musical. O grupo já havia gravado duas faixas no volume dois da série Congotronics, lançada pelo selo americano Crammed, a mesma que revelou o fabuloso Konono n. 1. In the 7th moon, the chief… é o terceiro volume da série.

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Em nossa já complexa gestação étnica, observa-se uma pluralidade de grupos oriundos da África, que por muito tempo foram classificados em duas categorias gerais e contrapostas: de um lado os sudaneses, supostamente letrados, islamizados; de outro, os bantos, geralmente considerados de estirpe e expressão cultural inferiores. Este equívoco foi possível graças à informação histórica deficitária, pois descobriu-se mais tarde que muitos escravos considerados “sudaneses”, vinham na verdade de Angola e Congo, regiões marcadamente bantas. Em suma, como escreve o poeta e historiador Nei Lopes, “confundiram etnias com portos de embarque”. O fato é que somos, em nossa maioria, constituídos por traços culturais bantos. Vale dizer, primeiramente, que os bantos são um grupo étnico-lingüístico nômade, cujo rastro se pode traçar desde o século 100 a.C.. Em segundo lugar, em se constituindo como uma variedade de grupos étnicos-lingüístico, e, portanto, ramificando-se em outros tantos rumos e encontros, tanto impuseram uma determinada inflexão cultural – notadamente no que diz respeito à língüa e às técnicas agrícolas – quanto absorveram os elementos próprios das regiões e dos povos com que topavam. A batucada, a visão estética da vida, o modo de falar repleto de vogais, a culinária, o amor à desproporção e à assimetria: muitos elementos indicam a presença da bantuidade na cultura brasileira. No entanto, não conheço sequer uma só voz que compare esta característica banta ao legado antropofágico do Modernismo de Oswald e da Tropicália de Caetano; mas me parece que um dos aspectos fundamentais da nossa cultura, vocalizado inclusive pela intelligentsia, é a bantuidade enquanto capacidade de misturar, seja na vida, seja na arte. Assumir este traço cultural é que são elas… Assumir, entenda-se: capacidade de compreender e introjetar nossa gestação étnica com todas as suas particularidades.

Essa é uma questão que me aporrinha há muito tempo. Claro que, em sendo uma velha questão, velhas também me soam as reações sempre que abordo o assunto num meio social composto por poucos negros – aqui note-se que, por razões de classe social, sempre fui um dos dois ou três negros da sala… E aí, o padrão é o mesmo: ou sou arrolado no discurso vitimizante dos movimentos sociais; ou me entulham de inúteis argumentos bio-sociológicos; ou então me deparo com o despreparo miserável dos próprios indivíduos que se consideram “negros”… Mas não quero resolver isso aqui na Camarilha (ufa!). Ocorre que a questão me foi trazida novamente por este lançamento da Crammed, o terceiro volume da série Congotronics dedicada ao Kasai Allstars. O grupo, que já havia nos maravilhado com duas faixas no volume dois, é formado por vinte e cinco músicos oriundos de cinco diferentes grupos étnicos do Congo: os Luba, os Songye, os Lulua, os Tetela e os Luntu. Sabendo que estes grupos étnicos habitam o Congo, e que, portanto, fazem parte do grupo étnico-lingüístico banto, a questão retornou. Pois a música do Kasai Allstars é gloriosa porque assume plenamente sua bantuidade. Inclusive, no release, disponível pelo site da Crammed no link acima, consta que os integrantes destes cinco grupos, apesar de representarem uma tradição musical e cultural específicas, simplesmente se encontram e, sem adaptações e adequações, criam suas músicas, demonstrando uma extraordinária capacidade de sintetizar elementos culturais. Kasai Allstars é mais um exemplo do ethos transformador da cultura banta. Essencialmente extática, plena de um conhecimento vivo, sua música é complexa, repleta de climas e tramas habilidosas. Mas sobretudo fiel a uma espécie de experimentalismo básico e primordial, constantemente disposto às mais inusitadas configurações culturais. Inclusive, repete-se aqui, como no grupo Konono n. 1, a amplificação criativa das kalimbas, que demonstram como o vigor deste experimentalismo se reflete também nos aspectos técnicos.

Herança de um passado longinqüo e simbólico? Claro que não. Mas como dizia o historiador francês Fernand Braudel, a mentalidade é a matéria mais delicada e antipática a mudanças bruscas, mesmo àquelas operadas pela mais característica e improdutiva violência européia. (Bernardo Oliveira)

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Quando descobrimos da existência de um novo lançamento da série Congotronics, a reação imediata é um sorriso de orelha a orelha que aparece no rosto. A aparição do volume 1 dos Congotronics, um siderante disco do Konono nº 1, grupo até então desconhecido, ampliou a percepção de todo um público para a música feita na África que não obedecia ao lirismo melancólico típico de alguns de seus artistas mais conhecidos no hemisfério norte (Salif Keita, Ali Farka Touré) e apresentava experiências sonoras até então inauditas, em especial o uso do likembé (uma variação tradicional do instrumento mais conhecido por mbira) amplificado e conseqëntemente distorcido, além de uma energia contagiante, extremamente sensual, e um pouco punk à sua maneira de colocar a pressão acima do polimento.

O Kasai Allstars foi um dos grupos apresentados pela gravadora Crammed na coletânea Congotronics vol. 2 e aqui eles recebem um disco inteiro para fazer. Num certo sentido, são o oposto do Konono. Não existe um som imediatamente reconhecível e reiterado ao longo de cada faixa (o que faz o charme e a frontalidade do Konono), mas diferentes estratégias e formas de composição – que, supomos, expressa a contingência de serem os Kasai Allstars provenientes de cinco grupos musicais distintos. Há delicadas peças instrumentais e barulhentas jams suingantes. O mbira está lá, não mais dominando a instância melódica do arranjo, mas acrescido como mais um instrumento à coesão do todo, junto com guitarra, chocalhos e diversos instrumentos percussivos, vários de som pronunciadamente metálico – variações de vibrafones, garfos, etc.

O ritmo é o guia da estrutura da maioria das músicas aqui apresentadas. Mesmo os instrumentos melódicos parecem mais fazer pontuações rítmicas no espaço do que propriamente oferecer algo autônomo ao ritmo. A voz, seja solo ou em coro, transmite essa imagem ao mesmo tempo sensual e ritualística de criação coletiva e à vontade, surgindo como a mera expressão de uma energia. É uma música extremamente envolvente e viciante, como os músicos do Konono foram antes deles. Mas se os Kasai Allstars não se comparam em termos de originalidade sonora, eles os superam em termos de versatilidade e riqueza de arranjos. Em última análise, é o que mais impressiona no disco: as pequenas variações operadas pelos instrumentos dentro do ritmo, a mudança dos climas de faixa a faixa, o forte sensação de emotividade e feeling que o perfeccionismo lapida sem apagar. Os Kasai Allstars definitivamente não vieram para compor um panorama, mas para reinar entre os grandes. (Ruy Gardnier)

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A recepção da música africana fora de seu continente de origem sempre foi cercada de duas questões quanto ao interesse externo: a apropriação colonial, em especial por parte dos europeus e o eterno gosto pelo exótico, pelo supostamente distante. Esses dois pontos são sensíveis e relevantes à questão e são muito bem tratados no excelente livro Exotica de David Toop, que apesar de não tratar muito longamente do lugar exótico da música africana no imaginário eurocêntrico, lança questões que são importantes para todo esse debate. Mas outro ponto é como essa música “exótica” é recepcionada na música local e como no caso da África negra, os negros europeus e americanos, sedentos por contato com suas “raízes”, junto com os colonizadores, contaminaram tal fone e quase tudo o que nos resta hoje é uma complexa relação de simbiose ou parasitismo, à depender do ponto que você escolha.

Esse é apenas um rascunho de um terreno complexo e cheio de armadilhas e que apenas fiz menção para tratar de mais um dos exemplos recentes de “exportação” africana que apesar de sua aura de ingenuidade e forte ligação com as raízes africanas múltiplas de cada um dos muitos membros do coletivo, também se percebe uma inconfundível influência de procedimentos colonizadores no modo de construção de cada uma de suas composições. Talvez aqui tenhamos um dos poucos bons resultados do violento mapa imposto às diversas tribos e etnias africanas pela sanha possessória dos colonizadores. Todos, ou quase todos os membros do Kasai Allstars é proveniente de uma das muitas tribos que compõe o que se conhece como Congo e apesar das diferenças e características próprias de cada uma delas, o que se percebe é um som ao mesmo tempo coeso e aberto a experimentações no uso das matrizes, como o procedimento das grandes bandas de jazz americano.

Quase em oposição ao som do Konono Nº 1 que absorve a influência externa em atitude quase “punk”, o Kasai marca pela multiplicidade e pela riqueza de matizes. O Konono é agressivo e contundente; o Kasai é unificador e plural. O som do Kasai, ainda que cheio de arestas e estranhezas, é dos mais sofisticados, com nuances que apenas serão ouvidas por aqueles que deixarem de lado as idéias de Mama África e se deixarem impregnar por uma autêntica manifestação do século XXI que soube dialogar com o passado sem tornar-se repetidor ou grupo folclórico.

Toda essa mistura parece ter um caráter especificamente urbano, tendo o próprio Konono sido descoberto tocando nas ruas de Kinshasa e a formação do Kasai pressupõe um ambiente onde esse encontro fosse possível e a idéia de união fosse atraente. Assim, a própria forma como a música africana é recepcionada externamente retorna como influência (não sejamos cínicos para ignorar que em todas essas manifestações, em todos os cantos do mundo existe também um forte desejo de “mostrar seu trabalho”, dialogar com o mercado estrangeiro) e demanda.

Mas que não se pense que falamos propriamente de hibridismo, nem que se questiona a “autenticidade” da música, pois muito distantes da música lounge com percussão “tribal” ou do jogo proposto por Paul Simon e até mesmo das investigações perpetradas por alguns músicos americanos como Dr. John. E no fim o que resta é um grande disco, digno de figurar no panteão de música africana recente, junto com o Konono, que nada deve ao que é produzido pelos ainda colonizadores.. (Marcus Martins)

3 comentários em “Kasai Allstars – In the 7th Moon, the Chief Turned into a Swimming Fish and Ate the Head of his Enemy by Magic (2008; Crammed, EUA/Congo)

  1. Marcos Thanus
    14 de agosto de 2008

    Fala Bernardo,

    a senha é “show da Rogeria tocando Tommy regado à miolo branco e massa pronta com pomarola”.

  2. Marcos Thanus
    14 de agosto de 2008

    “amplificado e conseqëntemente distorcido”

    Amplificado não implica distorcido. Isso foi inclusive um problema no Perc Pan, onde o técnico ignorante fazia tudo para não distorcer o som, que é pra ser estouradão mesmo. O resultado foi que o som foi ridículo prejudicando a performance. A distorção, no caso, vem da precariedade do equipamento que, rezam as más línguas benjônicas, era amplificado em um “sound system” caseiro numa birosca dentro de uma “favela” de Kinshasa. O que é interessante é o uso musical dessa precariedade, que faz as calimbas soarem como synths (ou sei lá que porra) e os rendeu comparações à pioneiros da música eletrônica.

    Belo texto, Bernardo. Sempre achei que a solução óbvia era substituir a Antropofagia pelo Canibalismo.

  3. corazondiablo
    30 de agosto de 2008

    Marcos,
    perfeita observação. É o problema do texto escrito sem revisão… Como eu ainda buscava um adjetivo para “amplificado” (queria fugir do anglicismo “diy”, mas ao mesmo tempo “tosco” e “caseiro” não me pareciam tão adequados), deixei em branco e segui o texto… e acabei não colocando nada… assim cmo está, claramente o eixo causal que eu menciono está furadíssimo…

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Publicado às 11 de agosto de 2008 por em Uncategorized e marcado , .