Camarilha dos Quatro

Revista de crítica musical.

Olodum – Egito Madagáscar (1987; Continental, Brasil)

O Olodum foi criado como bloco de carnaval em 1979, saindo pela primeira vez às ruas em 1980, distinguindo-se do som dominante à época por sua forte percussão e letras de caráter social e racial. O primeiro álbum, Egito Madagáscar, apenas foi lançado em 1987 e deu início a uma seqüência de dez discos em cerca de dez anos. Após ser o grande nome do carnaval baiano por um longo período, alcançando grande prestígio fora do país, por questões de mercado, o Olodum passou a fazer diversas concessões em sua música, caindo em relativo ostracismo. As sucessivas concessões à axé music, que se erguia como ditadura musical, aceleraram o processo de desgaste da banda que lançou seu último álbum de estúdio em 1997, sendo hoje em dia mais um projeto social que entidade musical e neste ponto é pálido fantasma de seu passado glorioso. (MM)

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Nem sempre é fácil analisar criticamente, com algum distanciamento um objeto pelo qual possuímos apego e, mais importante, memória afetiva. Em 1987, quando o Olodum lançou seu primeiro disco, Egito Madagáscar, eu tinha cerca de dez anos e era sentia-me compelido a dançar pelo irresistível poder de sua percussão, mas também ficava encantado pela peculiaridade das letras, cheias de palavras estranhas e referências a pessoas e lugares que eu desconhecia. A música era imponente e orgulhosa, bem afeita aos propósitos afirmativos da banda que à época não conhecia.

Egito Madagáscar é o primeiro álbum do Olodum e também o que estabeleceu o padrão sonoro do grupo: uma percussão seca, complexa e marcadamente repetida de modo cíclico. O acompanhamento vocal alternado entre o líder e um coro (mixado um pouco à frente da percussão, sem excessos, mas suficientemente expressivo para o tornar inconfundível) terminava por caracterizar os recursos despendidos. Assim, a música era esquelética e hoje ainda impressiona a sua energia dentro de um padrão tão limitado; como se para alcançar o resultado almejado, o Olodum demonstrasse quão pouco era necessário. Posteriormente mais elementos foram acrescentados à fórmula (o que propiciou a criação do estranho gênero do samba-reggae), mas a contenção deste disco, como sua aparente pobreza estética, muito criticada à época, hoje sobressai e põe Egito Madagáscar entre os principais e mais significativos álbuns dos anos 80; época justamente marcada por um excesso de produção e uma certa breguice no uso de teclados e arranjos sintéticos. Apenas a última faixa, instrumental, conta com um arranjo de metais acompanhando a percussão; isso apenas ressalta o rigor de tudo que a precedeu e termina o álbum com a ressonância especial das grandes obras.

É fácil, dentro desse panorama apelar para metáforas sobre o chamado primevo da música de raiz; mas ainda que isso seja verdadeiro, é mais importante observar essa matriz como a demonstração da força da matriz africana, seja em suas origens ou aculturações latinas, brasileiras ou cubanas filtrada através de uma elaboração e recriação e não mera transposição.

As letras, em toda a sua inconsistência histórica e concessões popularescas são dos capítulos mais específicos e sem precedentes da música popular brasileira. Referências raciais, musicais, religiosas, histórico-políticas se misturam para criar uma mitologia que, apesar de fazer menção lugares, pessoas e doutrina política reais, parecem existir em outro plano, uma verdadeira distorção que junta faraós, leninismo, baianidade e tantas outras coisas que apenas podem ser descritas como… hã… letras do Olodum. Letras estas que, há poucos anos, geraram um debate estúpido e ‘bizantino’ em um jornal de grande circulação de Salvador, em que críticos, historiadores e compositores discutiram as imprecisões das letras; se isso não tivesse ocorrido de verdade, bem caberia em um esquete do Monty Python.

Em um contexto de faixas tão uniformes e excelentes, é difícil apontar destaques, mas poderíamos exemplificar a excelência do disco por faixas como “Salvador Não Inerte – Ladeira do Pelô” (que conta entre seus compositores Beto Jamaica, que posteriormente seria um dos artífices do pagode baiano, fazendo parte do Gera-Samba e do famigerado É o Tchan!) e “Faraó Divindade do Egito”, músicas incrustadas no imaginário popular, mas que ainda são capazes de gerar o mesmo transe que há vinte anos atrás. Iniciando uma marcante seqüência de álbuns, Egito Madagáscar, é rico, estranho e impõe seu lugar assegurado na história musical de um país que gosta de hipocritamente sofisticar sua herança ou torcer o nariz para manifestações autênticas e relevantes como curiosidade para gringo. O Olodum é rei. (Marcus Martins)

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O Olodum é, talvez, um dos grupos mais importantes para a minha formação musical. Lá pelo início da década de noventa, quando eu tinha entre seis e sete anos, meus pais adquiriram um reprodutor de CD. Até então o que eu conhecia de música era bem pouco: ouvia as trilhas de seriados japoneses que gostava, os LP’s do Balão Mágico, Trem da Alegria e assim por diante. O contato que tinha com os vinis dos meus pais era determinado puramente pelo apelo visual: era fascinado com as capas, contracapas e artwork dos discos. Mas com a inserção do compact disc em nossas vidas, tudo mudou. Aquele novo suporte musical tido como de alta qualidade e de audição infinitas vezes superior ao vinil (uma mentira acreditada até hoje no Brasil) me fazia ter interesse maior pela música e pelos artistas. Meus pais, que já detinham uma coleção considerável de LP’s, queriam, agora, ter todos aqueles discos em CD. O Olodum não era um destes, mas, certamente, uma novidade na época, que minha mãe, sempre antenada, não deixou passar em branco. Foi nessa mesma época que passei a associar música a músico, canção a cantor e compositor, etc. O disco do Olodum que possuíamos era o Best Of, que contém metade de Egito Madagáscar e sua sonoridade era decerto algo que nunca tinha ouvido antes. Lembro até em confundir o Olodum com o Timbalada, cujo primeiro disco era tocado à exaustão lá em casa: os dois eram detentores de uma estética predominante na Bahia, mas que para um menino carioca, era um tanto nova e identificável: melodias fáceis de cantar e refrões pegajosos sustentados por um exército de bateria e instrumentos de percussão que contagiavam em qualquer ocasião.

A partir daí ficou bem claro pra mim que a música do Olodum era totalmente ligada a uma esfera sensorial, assim como o carnaval carioca, que me conquistara mais ou menos na mesma época. E foi somente comparecendo a um desfile das Escolas de Samba que pude perceber o quão é importante a experiência ao vivo, a presença física no mesmo espaço em que a música é executada. O caso do Olodum não é diferente. Infelizmente, nunca assisti uma apresentação do grupo, mas presumo que toda a graça em sentir sua música seja ao vivo e a cores. Como no carnaval carioca, é preciso estar lá para conseguir assimilar toda a quantidade de instrumentos de percussão, para sentir a ressonância do bumbo e sua vibração no coração. Uma versão em mp3 de má qualidade de um primeiro disco não tão bem gravado e masterizado para o vinil brasileiro, conhecido por padrões de áudio mais baixos, também não ajuda. O ideal seria estar lá, na Bahia, na primeira metade da década de noventa, para presenciar a banda em seu auge, mas como voltar ao tempo não é possível, há de se recorrer às gravações que restaram. Portanto, recomendo a coletânea Best Of, que reúne o fundamental da banda e possui boa qualidade de áudio, e não recomendo este primeiro disco, que apesar de belo, deixa a desejar tanto em quesitos técnicos quanto emocionais (não é impactante o suficiente e não faz o corpo estremecer). (Thiago Filardi)

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Talvez ainda seja muito cedo para demarcar o legado e fazer a fortuna crítica de toda música baiana denominada axé ou pagode baiano ou qualquer outro rótulo mais pejorativo. As razões são muitas, desde a onipresença aos apelos comerciais e baixarias, que criam uma inescapável má-vontade que obscurece a visão crítica. Digo isso, claro, sobre aqueles artistas que chegaram ao megaestrelato fazendo um som não muito distanciado dos demais. Mas o instinto parece ver alguns artistas imediatamente como algo distinto e especialmente notável dentro dessa produção, sem sequer precisar da distância histórica de hoje. No caso, Olodum e Carlinhos Brown se destacam absolutamente. Cada um, a seu modo, percorreu caminhos mutantes, mas deixou como rastro uma incansável luta pela redefinição da percussão nos ritmos, por assim dizer, de rua. Em algumas das etapas do percurso, ambos incorreram em experimentos de defesa mais complicada, mas o essencial de seus trabalhos consta entre as melhores coisas feitas de suas épocas. E isso é mais que o necessário.

Como o caso aqui é o Olodum, e mais especificamente o primeiro disco do grupo, Egito Madagáscar, cabe atermo-nos à época em que ao grupo bastava a dinâmica marcial e simples porém nada humilde de um conjunto de percussão, voz e coro. A primeira coisa, óbvia mas que não pode deixar de ser dita, é o extremo grau de invenção com que o arranjo dos instrumentos de percussão pontua o ritmo de forma a criar um ritmo todo novo e intensamente pulsante, imediatamente chamado de samba-reggae apesar de não soar muito parecido com nenhum dos dois. Melhor que isso: não só eles criavam levadas fantásticas de bateria, como também criavam momentos de sutil variação com bumbo ou caixa que complexificavam mais ainda a marcação. O nosso drill’n’bass nascia antes do deles, e com os instrumentos mais tradicionais que se podia usar.

Mas há um elemento que se destaca menos do que essas características da bateria, ao menos nos quatro primeiros discos do conjunto, que seriam sintetizados na essencial coletânea The Best of Olodum (1990), ainda a melhor introdução e o kit básico do grupo. É esse tom hierático e severo a que a voz dos cantores se eleva, não como puxadores de samba, mas como se estivessem cantando diretamente à divindade, à dimensão histórica e política que as letras evocam. Uma voz que à desnecessária demonstração de apuro vocal substitui um vigor pelo despojamento que a bateria, seca, sublinha. Como resultado do arranjo sem médios ou sons que “encham” a distância entre voz e bateria, a voz ganha um poder melodioso incomum, que as composições aproveitam ora nas faixas que se estruturam como sambas-enredo (como “Madagáscar Olodum”, “Reggae dos Faraós” ou “Faraó, Divindade do Egito”), ora nas que têm feição de canção com formato estrofe-refrão.

Em retrospecto, Egito Madagáscar surpreende pela pureza de suas composições e arranjos, tão diretos quanto pungentes, e únicos no panorama brasileiro. Refrões viciantes, imaginários fantásticos – nomes de deuses, figuras históricas africanas, líderes comunistas, Egito, Cuba, Madagáscar – e uma sonoridade original que seduziu meio mundo, aqui dentro e lá fora. Um disco surpreendente e inesperado que, pela energia, pelo talento e pela singularidade no panorama da produção da época, conta entre os mais significativos discos feitos no mundo àquela época. E que ainda hoje (talvez mais, até) mantém seu vigor. (Ruy Gardnier)

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Gostaria aqui, não de realizar uma crítica do álbum Egito Madagáscar, tarefa da qual certamente se encarregarão meus companheiros de Camarilha. O disco é maravilhoso, as canções lindas, o batuque irresistível… Mas gostaria de fazer uma observação quanto a uma posição muito comum no cenário artístico-racial brasileiro que perdura e que também perpassou a história do grupo Olodum.

Há um ano atrás, escrevi um artigo para o site colaborativo Overmundo, me referindo a um certo comportamento do sambista brasileiro em relação à indústria do entretenimento. Nele, me referi ao “crioulo do grapete”, aquele que, nas palavras de Nelson Rodrigues, “não faz a concessão de um mísero olhar ao broto estupendo que passa diante de si”. Com isso, ele antecipava a crítica que Glauber Rocha fez em Câncer ao negro sorridente e impassível, acostumado a adornar as festas da Casa Grande com sua alegria, seu molho, sua dança, mas incapaz de se organizar e questionar sua condição social e histórica de forma a superá-la. Hoje, esta crítica ainda faz um certo sentido, embora muitos passos tenham sido trilhados no sentido de superá-la. Mas, na minha opinião, na mentalidade do sambista, a qual tenho acesso por anos de convívio e freqüência em inúmeros “pagodes” no Rio de Janeiro, perdura uma certa necessidade de se vincular a qualquer custo ao mercado. Óbvio: todo artista quer tornar sua arte visível e rentável. Mas, me pergunto, à custa de quê? Qual seria o limite ético desta necessidade? Certamente há um limite e, me parece, Zeca Pagodinho fazendo embaixadinha na tevê após o Brasil ter perdido a copa de 2006 de forma vergonhosa, excede todos os limites…

Da mesma forma me pergunto: como a música do Olodum, tão moderna e visionária, pôde ser apropriada por Paul Simon de forma tão banal e burocrática? Como pôde o artista americano se servir dela como um ingrediente primitivo, supostamente “modernizado” por sua música vagabunda? Não nos iludamos com as referências explícitas à uma suposta ancestralidade africana (mitológica, no mais das vezes) e a dimensão “primitiva” de seus tambores: o Olodum é uma operação artística e social de ponta, muito além do folk-pop insípido de Simon. Como pôde acontecer este estranho e contraditório fenômeno?

Ora, me parece que não há outra explicação. Assim como a melhor matéria-prima brasileira ainda é exportada de forma desigual, o Olodum se prestou a adornar o disco do cantor americano em favor de maior visibilidade e estrutura. Numa improvável inversão de valores, o Olodum vestiu a capa da ancestralidade e do primitivismo para servir de caução à música de Paul Simon. O “crioulo do grapete” atacou mais uma vez: Paul Simon se confundiu, mas neste caso o Olodum, no popular, se embananou.

Vinte anos depois de seu lançamento, Egito Madagáscar requer uma audição “arqueológica”, que desbaste toda uma série de equívocos e ilumine sua experiência e o contexto social e cultural no qual se inscreve. É que, em sendo a axé music um prolongamento do samba reggae, o álbum nos remete a um momento em que esta música não só representava um posicionamento efetivo de uma comunidade organizada e ávida por expandir-se em todos os aspectos, como também atualizava o “ouvido” musical desta mesma comunidade. Quero dizer: as referências ao primitivo e mitológico são apenas estratégias conjecturais de legitimação; os artistas de samba reggae e a axé music realizam uma mestiçagem cultural tão contudente quanto o drum’n’bass e o dubstep, também constituídos pela síntese de referências locais e afro-caribenhas. Deveriam, portanto, se comportar como tal. A atualidade do Olodum é expressão própria de uma criatividade que, mesmo organizada, não soube evitar um certo rebaixamento em relação ao capital. Esta observação pode até denotar ingenuidade de minha parte, na medida em que há um acordo tácito mundial que reza ser o dinheiro o Deus supremo ao qual todos devem se curvar. Pois bem, sou ingênuo. Tanto melhor… (Bernardo Oliveira)

6 comentários em “Olodum – Egito Madagáscar (1987; Continental, Brasil)

  1. Filipa Marques dos Santos
    8 de fevereiro de 2009

    Para a próxima não escrevam um texto tão grande!
    lolll!!!!

  2. Rafael
    14 de março de 2009

    Escrevam sim, nada a ver!

  3. olhosdacoruja
    4 de julho de 2009

    Excelente texto!

    Eu recentemente comprei o ‘Egito Madagáscar’ para a minha colecao, pois a importancia deste LP na historia da musica brasileira eh imensa!

    Abracos!

    olhosdacoruja.com

  4. nilton cezar
    22 de setembro de 2009

    sou olodum

  5. nilton cezar
    22 de setembro de 2009

    gostaria que olodum voltacecom letras musicais falando de historias da raca negra e cutura e historia do brasil e da africa como era antes.

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Publicado às 23 de junho de 2008 por em Uncategorized e marcado , , .