Camarilha dos Quatro

Revista de crítica musical.

Mount Kimbie – Sketch on Glass EP + Maybes EP (2009; Hotflush, Reino Unido)

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Mount Kimbie é uma dupla formada por Dominic Maker e Kai Campos, conhecidos como Dom e Kai. Ambos têm apenas 22 anos e vivem em Londres. Maybes, primeiro lançamento do grupo, saiu em fevereiro desse ano; Sketch on Glass apareceu em julho, ambos pela Hotflush Recordings. Ao vivo, a dupla ganha o auxílio luxuoso de James Blake. (RG)

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O Mount Kimbie surgiu alvissareiro para ao mesmo tempo não promete mudar nada no panorama da música britânica urbana, sua produção até agora, os eps Maybes e Sketch On Glass, demonstram muito obviamente suas cartas e deixam claro que não teremos um novo Burial. Suas influências são por demais evidentes e o que os torna muito interessantes é justamente a abrangência e o fôlego para sustentar as mesmas. Em Maybes parecemos ouvir a dupla conversando, demonstrando sua insatisfação (a minha, na verdade) com os rumos do dubstep, tanto pela aproximação esterilizante com o dub-techno alemão ou com a dance music mais farofa e talvez pensando como eles gostam da linhagem mais Mille Plateaux da eletrônica alemã, e em como seria rico trazer à Inglaterra algo da cepa daquele que foi um dos principais selos europeus no período de ’94/’04. Apesar de sonhar com os clicks e cuts e com o ambient do Gas, eles não queriam deixar de ser funk, um funk via DJ Shadow, especialmente aquele de Private Press e principalmente do dubstep mais climático. Me diga que isso é um exercício de inferência gratuita, mas posso responder que é apenas o que escapa de cada uma das faixas.

Mesmo que cada um dos nomes citados possa ser ouvido ou pressentido nas faixas de Maybes existe algo que é inegável e que nunca vai aparecer em uma faixa de um, digamos, Boxcutter. Falo de talento, ou mais especificamente no caso dos djs, da mão, do ouvido – daquela precisão e fluidez que separa o mero imitador do criador genuíno, que ainda transpira os cacoetes de quem é muito jovem e reflete em sua produção aquilo que escuta na música alheia; de quem demonstra empolgação com o trabalho de seus heróis e até involuntariamente os copia.

Acontece que própria filiação eleita pela dupla é inusitada o suficiente para nos fazer abrir um largo sorriso ao ouvir os primeiros segundos da faixa “Maybes”, indiscutivelmente a melhor criação deles até o momento. Quando pensávamos ouvir um ep de dubstep, somos surpreendidos com um fragmento de frase de guitarra e um drone adocicado. Quase na metade da faixa, quando entram as batidas picotadas e os vocais (nem tão etéreos quanto o Burial, nem tão ‘cantados’ quanto o restante do dubstep), a primeira coisa que pensamos é, porra! ninguém lembrou de fazer isso antes! mas como? “Maybes” parece aquela faixa que precisava ser produzida e ainda não o tinha sido por mero infortúnio ou esquecimento. Aí também reside gênio. Em escala reduzida é o que o Avalanches fez quando criou o Since I Left You ou quando o Massive Attack nos arremessou o Blue Lines. Verdade que o padrão dos discos citados é alto demais para quem apenas lançou cerca de trinta minutos de música e nenhuma das outras faixas é tão lapidar quanto “Maybes”, mas o leque de possibilidades aberto por cada uma das faixas, sejam os sons concretos de “William” com sua batida-pulso que progride a breakbeat e seus vocais afogados, os recortes de “Vertical” ou sejam os rumos bem diversos tomados em “Serge” e “At Least” que não surpreendem tanto quanto as faixas de Maybes mas nos gratificam muito mais que a maioria dos funkys e wonkys que grassam os lançamentos da Boomkat e mesmo o frustrante disco do Martin, ainda que não alcance a pujança de um Joker.

A notar que Sketch On Glass dá uma guinada para territórios mais dançantes mas a própria faixa título parece muito mais um bom ensaio e acúmulos de clichês que algo memorável ou contagiante, sendo o vocalzinho distorcido e ordinário o que mais incomoda. “Serged” já recupera o fôlego ao propor uma interessante sobreposição de elementos mais ambient com batidas criadas à partir de sons de videogames. Improvável que alguém vá dançar ouvindo isso mas ainda assim uma puta faixa.

O título deste último Ep pode entregar um pouco mais do que devia da incompletude de muitas das faixas, se isso for consciente, melhor, pois aqui já temos rascunhos de fôlego para nos deixar na expectativa dos próximos passos e eleger uma de nossas faixas do ano. (Marcus Martins)

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Onde foi parar o IDM? Não o termo, porque esse aí faz muito bem de estar devidamente enterrado, pela equivocidade que o nome sugere (Intelligent Dance Music refere-se não à ideia de música dançante inteligente – o que é, afinal, “música inteligente”? – mas à afeição dos artistas do pseudogênero por inteligência artificial). Mas as preocupações inerentes a toda seara – vale lembrar que, apesar de subsumidos por um nome, os artistas tinham estéticas inteiramente diferentes, quando não contrastantes – parecem ter se dissolvido inteiramente, seja por uma espécie de canonização dos nomes mais estabelecidos – Aphex Twin, Autechre –, pela indiferença devida a uma estabilização das preocupações – Múm, Squarepusher estão com discos novos e ninguém fazendo um alarde maior, com razão até – mas especialmente pela falta de continuidade das preocupações desses veios musicais nos artistas que vieram a seguir. Mal ou bem, as questões musicais que chegaram com o IDM foram ser trabalhadas por artistas mais, digamos, atmosféricos (Philip Jeck, Fennesz), ou então por produtores que adaptaram as problemáticas a territorios mais dançantes, em geral traduzindo-os em termos de hip-hop (Prefuse 73, Four Tet, e o que veio em seguida, com sucessores como Flying Lotus). Do outro lado do espectro, o UK garage voltou à tona com o grime e com o dubstep, apresentando possibilidades de pesquisa sonora bastante distintas das dos IDMeiros.

Digo tudo isso porque o Mount Kimbie parece ser, de todos esses projetos eletrônicos ingleses recentes envolvendo dubstep, techno, wonky etc., aquele que mais está próximo de resgatar uma certa singeleza de melodias e timbres, típica de Aphex Twin, Múm, Boards of Canada, Autechre…, e incorporá-la ao som de hoje, mais orientado para a batida, com grave de dub ou assemelhado, e o característico breakbeat com sotaque r&b que grassa pelo underground britânico hoje via wonky. Não que o Mount Kimbie se resuma a isso: há também, e particularmente, uma forte influência de ambient, de Brian Eno a Gas, bastante presente não só na criação de ambiências, mas nas melodias no caso do primeiro e na utilização de glitches como ambiência no caso do projeto de Wolfgang Voigt. Talvez isso até explique porque “Serged”, a segunda do EP Sketch On Glass, seja tão mais interessante que a faixa que dá nome ao disquinho, simpática porém sem destaque no meio de uma produção vasta de músicas semelhantes. “50 Mile View”, mais dub ambient do que wonky ou congêneres, também produz resultados mais singulares. “At Least”, por abusar de barulhinhos de brinquedinhos tipo Merlin (fetiche um tanto inexplicável da galerinha wonky), fecha o EP de forma menos significativa. O EP Maybes se revela mais coeso, com destaque para as faixas do lado A, “Maybes” e “William”. Mas no geral, os dois EPs deixam mais a impressão de um talento em vias de se firmar do que de um projeto já inteiramente constituído e com total personalidade. Esperemos, então, os próximos lançamentos do Mount Kimbie. (Ruy Gardnier)

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O panorama geral da música eletrônica inglesa e americana aponta para uma ampla variação do espectro de referências e estilos. Grime, hyphy, chiptune, dubstep, crunk: rótulos que funcionam mais para embaralhar a cabeça do ouvinte do que para identificar de forma prática e coesa essas variadas vertentes. Ocorre que na prática as coisas não sucedem de forma clara e distinta. Este embaralhamento não reside somente na cabeça do ouvinte, mas na própria produção. O carnaval de referências e estilos, o descompromisso com uma coesão formal, tudo isso conspira para que os hibridismos emerjam com a força de um estilo. O trabalho do Mount Kimbie é um sintoma pregnante desta realidade. Dois jovens de vinte e poucos anos, auxiliados pelo produtor inglês James Blake, desfilando com uma desenvoltura ímpar por entre diversos gêneros e crossovers possíveis em apenas oito faixas que somam não mais que trinta minutos. Nas quatro faixas de Maybes podemos ouvir o dub techno da faixa título; “William”, ambient semelhante a algumas faixas do último álbum do The Field; “Vertical”, um dubstep que ora lembra o Gas de Wolfgang Voigt, ora remete às percussões cristalinas e desencontradas do Clouds; e “Taps”, que demonstra a habilidade da dupla para combinar timbres percussivos nem tanto originais, mas certamente promissores. Seis meses depois, a dupla lança Sketches on Glass, seu segundo EP. E não é que o conjunto das faixas lançam o trabalho a uma outra direção, mais próxima do dubstep e do wonky, com alusões explícitas ao trabalho de Joker e Martyn? Se em Maybes tínhamos a vertente mais experimental e reflexiva, Sketches… traz o flerte direto com os bleeps de videogame do chiptune em “At Least”, com o Martyn das batidas voltadas para a pista na faixa título, com outras referências explícitas, no caso Flying Lotus em “Serged” (que tem uma cuíca muito bem sacada…) e na faixa mais original do EP, “50 Mile View”, que até me confunde um pouco, por parecer com tantas coisas…

Não sei se o Marcus indicou os dois EPs juntos como forma de chamar atenção para este panorama, mas o fato é que veio bem a calhar. Maybes e Sketches on Glass consituem dois lados de uma mesma moeda, de uma mesma orientação. Mas será que a dupla está fadada a traduzir os sintomas de uma época, a operar somente sobre seus movimentos mais evidentes, ou, ao contrário, utilizarão seu radar para buscar algo mais, algo além? Só o tempo e os próximos lançamentos poderão dizer. Por ora, ficamos com a surpresa contida, mas ainda assim interessante. (Bernardo Oliveira)

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Publicado às 12 de agosto de 2009 por em eletrônica, Uncategorized e marcado , , , .