Camarilha dos Quatro

Revista de crítica musical.

Ao Vivo: Black Pus, Shawn Greenlee, Derek Holzer (Tonewheels), Humanbeast (30/04/2010, AS220, Providence)

Para uma noite totalmente dedicada ao noise e às performances pantomínicas, o público contava com o surpreendente número de 80 pessoas. Talvez impulsionada pela presença do Black Pus de Brian Chippendale, ícone do underground de Providence (sic), e membro do Lightning Bolt, esta verdadeira “massa crítica” de ouvintes livres de preconceitos, sedentos por uma experiência radical, se aglomerava no AS220. Será que eles estão, de fato, livres de preconceitos? Não. Por duas vezes o alemão Derek Holzer pediu para que cessassem as conversas, que eram realmente incômodas. O local é uma espécie de espaço cultural polivalente que reúne os hipsters e “tricksters” de Providence em torno de cursos nas áreas de artes plásticas, exposições, filmes e shows, além do bar-restaurante que vive cheio e em “clima de paquera”, se é que vocês me entendem… Naturalmente nem todos estão ali para ouvir “barulho”, ignoram a necessidade de um espaço sonoro neutro para que o “compositor” possa explorar não só massas sonoras densas, mas também os silêncios, as pequenas engrenagens…

Derek Holzer e Humanbeast se perdem em clichês da lap top music e da performance. Já o primeiro artista da noite, Shawn Greenlee, impressiona por criar sonoridades abruptas, claramente influenciadas por Merzbow. Ele se utitliza de uma mesa de luz sobre a qual posiciona diversas colagens multi-coloridas, que são captadas por uma câmera câmera e processadas em dois lap tops. Conforme Greenlee sacode as figuras diante da câmera, ou as cobre com papel manteiga super transparente, os padrões e as variações sonoras se alteram consideravelmente. Completa o set um apetrecho que eu não soube identificar, mas que se assemelha a um joystick e produz variações de frequência. Na medida em que outro artista na mesma noite utilizou o mesmo mecanismo sensível que converte dados gráficos (desenhos, movimentos, luzes) em dados sonoros, pude adotar um termo de comparação e percebi que um mérito inegável da apresentação de Greenle foi a combinação de equílibrio na condução do set (variações alternadas, riqueza de timbres, início-meio-e-fim) com uma performance verdadeiramente punk. Greenle bate cabeça literalmente enquanto manipula seus aparelhos e isso não só faz sentido porque o corpo é como que afetado pela agressão sonora, como também faz a diferença do espetáculo.

A mesma diferença que fez Brian Chippendale com seu projeto one-man-band, Black Pus. Ele executa sua bateria de forma virtuosa, usando e abusando de quiálteras e viradas. Cada tambor está “trigado” a uma estação sonora, assim como o microfone usado sob a máscara, o que multiplica as fontes com as quais ele cria sua mistura inusitada de metal, noise, punk e ritmos tribais com vigor adolescente. O espaço, onde funciona até uma galeria, deveras comportado, se torna uma espécie de inferninho punk, com a roda pegando fogo. Compreensível, diante da sonoridade exuberante que produz a combinação de bateria e voz com efeitos que Chippendale propõe. Embora se assemelhe demais ao Lightning Bolt, duas coisas chamam atenção. A simultânea presença de um espírito compenetrado, atento aos mínimos detalhes técnicos, com uma ira atávica que investe com energia monumental sobre os tambores. E, apesar da brutalidade, uma sensibilidade ímpar para construir cada faixa combinando urgência e sutilezas. “Fire music”, música incendiária para ouvidos livres, o Black Pus é uma das one-man-bands mais interessante da atualidade, ao lado de Fennesz, Hecker, etc.

A reação cautelosa à música de Greenle, completamente abstrata e violenta, em contraste com a efusiva recepção do Black Pus, faz pensar que, de fato, o noise radical é uma música-limite. Ou melhor, é o limite da música, indicando a linha tênue entre o que pode ser integrado à sensibilidade musical e aquilo que está absolutamente interditado. Chippendale dialoga ainda com o ritmo, com a levada 4/4 que fornece alguma coordenada para os sentidos; já Greenle se arrisca no escuro, esculpindo sua obra a partir de um universo feito de matéria-prima bruta e rebelde. Se levarmos em consideração esta relação entre a cultura (a música) e a natureza (o som), trata-se de um embate ambíguo, ora contemplando a inexorabilidade do som, que invade os ouvidos e afeta o corpo antes do gosto; ora demonstrando que o discurso musical detém o poder relativo de enquadrar a natureza, mesmo dialogando perigosamente com seu “pai”, o som. É nesta encruzilhada perigosa que se encontra o noise, presente de diferentes maneiras nesta noite fantástica. (Bernardo Oliveira)

PS.: O fotógrafo mandou o Lima.

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Publicado às 2 de maio de 2010 por em ao vivo, noise e marcado , , , .