Camarilha dos Quatro

Revista de crítica musical.

Keith Fullerton Whitman – Dream House Variations (2009; Arbor, EUA)

dreamhousevariations

Keith Fullerton Whitman é um compositor de música eletrônica nascido em Somerville, Massachussetts, EUA, em 1973. Estudou no Berklee College of Music, onde teve maior contato com elementos de composição em música eletrônica. Inicialmente atingiu maior projeção com seu pseudônimo Hrvatski, um dos mais prestigiados projetos de eletrônica experimental da virada da década 90/00 (alguns discos: Okapi Tracks, Oiseaux 96-98, Swarm and Dither). A partir de 2002, com o disco Playthroughs, lançado pela Kranky, passou a lançar discos mais sistematicamente com seu próprio nome, voltados mais para o ambient e o drone do que para a IDM (ainda que seu primeiro disco, 21:00 for Acoustic Guitar, de 1998, já tenha todas essas características). Seguiram-se entre 2004 e 2006 Antithesis, Schöner Flussengel, Multiples e Lisbon, além de Yearlong, parceria com Greg Davis, além de diversos CD-Rs e lançamentos de tiragem limitadíssima. Depois de um silêncio de aproximadamente dois anos, Whitman voltou em 2009 com Dream House Variations, para quatro fitas cassete, e Taking Away, cassete simples. As quatro fitas de Dream House Variations devem ser executadas simultaneamente, com instrução para que cada aparelho esteja numa diferente extremidade do local de audição. (RG)

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Keith Fullerton Whitman é um cara obcecado por música eletrônica. E como tal, carece tanto de um ambiente propício a pesquisa, como de todo um aparato técnico extremamente caro e sensível que torna comum a adesão de certos artistas a instituições acadêmicas e estatais, como rádios federais por exemplo. Foi o caso de Stockhausen e Ligeti no Nordwestdeutscher Rundfunk em Colônia, e, mais recentemente, Dan Deacon em relação ao Purchase College, de Nova Iorque. A intenção geral pode ser resumida não só nas possibilidades de ampliação do universo sonoro e manipulação da repercussão no espaço, mas na própria possibilidade de criar interações entre suportes oriundos de épocas diversas. Foi nesta seara que Whitman se especializou, unindo suportes da pré-história da música eletrônica como toca-fitas e sintetizadores analógicos a aparelhos de última geração, como um macbook rodando Max-MSP. Se um outro pesquisador do gênero, Kevin Drumm, se concentra na produção da minúcia e da intensidade, Whitman é mais inconsequente e “técnico”, pois se concentra na noção de interface entre suportes, fontes e materiais de difusão. E o que mais impressiona é que ele o faz de forma plenamente integrada a um objetivo criativo. Quero dizer: longe de se configurar como fetiche técnico, o interesse de Whitman na interação entre esses elementos favorece a criação, ainda que englobe ao mesmo tempo um monástico aspecto de pesquisa.

Alguém pode notar uma certa sisudez, uma ausência de graça e irreverência, que caracteriza por exemplo o trabalho de outros experimentadores americanos, como Ives e Cage. De fato, há uma seriedade no projeto, mas vale notar que ele não é sisudo à toa. Seus objetivos que, sendo ambiciosos, produzem uma aura de concentração e dedicação tal que por vezes pode ser mal interpretada. Há leveza e liberdade nas intenções de Whitman, não no som que ele produz. O caso desta caixa contendo quatro fitas cassetes, Dream House Variations, é exemplar neste contexto. A proposta adquire sentido quando, seguindo as instruções do autor, nos posicionamos no meio de quatro toca-fitas, na “casa”, experimentando as “variações”, nuances de altura, dinâmica e intensidade que soam conforme tocamos as quatro fitas simultaneamente. Dentro da “casa” proposta por Whitman vamos aos poucos sentindo um clima de laboratório, vamos experimentando uma sensação aguda da recepção, como se estivéssemos de fato participando de um experimento científico. Mas o que ocorre aqui se aproxima mais de uma aberração do que de um a experimentação controlada, para fins de reiteração. Como escrevi acima, Whitman atenta mais para as possibilidades de criar interfaces sonoras – técnicas, mas também estéticas – do que em criar exclusivamente na seara da música propriamente dita, como ocorria em suas primeiras criações, sob a alcunha Hrvatski. De forma que se torna curioso encaixar Dream House Variations no contexto pós-Hrvatski. Percebe-se que as preocupações do autor não se vinculam a nenhum gênero específico; sua música vaga tanto entre o ambient, o noise, o drill and bass, o IDM, etc., sem se importar com a noção de identificação, mas com o alcance e a possibilidade de mobilizar outras vertentes de exploração do espaço sonoro. Após assumir o nome próprio, ele deixou para trás as formas musicais para abraçar o inominável.

As variações propostas por Whitman operam não somente interações técnicas, mas evocam também um entrelaçamento entre a parcimônia do drone e a cacofonia do noise, construindo passo a passo uma proposta que não se esgota na audição. Seu trabalho diz respeito a uma dimensão conceitual da música que não só experimenta os aspectos propriamente sonoros, mas também o explora de forma crítica, problematizando as fontes e revelando conexões que se exprimem também no campo extra-sonoro. A música não está somente no ouvido, parece gritar uma corrente que começa com Stockhausen e tem em Hecker, Drumm e Whitman seguidores fiéis. Prejuízo para uma certa inflexão de pensamento que deseja encurralar a música nas formas cristalizadas da chamada “cultura de massas”. De forma que só tenho a dizer: sorte a nossa vivenciarmos uma época em que estas intenções atuam a todo vapor. (Bernardo Oliveira)

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É difícil julgar um álbum quando não se pode atender à sua cartilha de execução. E no caso de Dream House Variations, as especificações exigem manobras de um aparato sonoro que poucos podem cumprir: ouvir as quatro fitas cassete simultaneamente em quatro aparelhos de som diferentes e organizá-los de modo que fiquem posicionados em quatro pontos separados de um ambiente com chão de madeira. Pra começar, acredito que pouquíssimas pessoas detenham quatro aparelhos sonoros, locomóveis e capazes de rodar fitas K7 dentro de casa. Seria necessário também comprar as fitas e não tê-las em arquivos de MP3. Ainda que o indivíduo atenda a todos os pré-requisitos, terá que fazer acrobacias para organizar as caixas em quatro pontos diferentes do espaço, não esquecendo que o chão não pode ser de carpete ou de algum outro material sintético, à exceção da madeira.

Diante de tantas exigências, a análise de Dream House Variations se torna complexa e sujeita a equívocos. O conceito da obra também não preza pela originalidade, já que suas demandas de localização espacial dos alto-falantes remontam ao sistema quadrifônico, criado no início da década de 70. Quanto à execução simultânea de quatro suportes sonoros distintos, a ideia já fora explorada no disco Zaireeka (1997), do conjunto americano The Flaming Lips.

Mesmo defronte de tais dificuldades, ouvi o disco pelo menos três vezes, como é regra na Camarilha. Graças a um blog, que comprimiu as oito faixas (dois lados de quatro cassetes) em uma só, pude ter acesso ao que seria um esboço da obra. Também ouvi separadamente os trechos musicais, embora não faça muito sentido, e constatei que há uma influência grande de Tangerine Dream, Ash Ra Tempel e Cluster na composição de certas partículas. O caráter “espacial” da obra, quase cósmico, também remete aos alemães. Mas a junção dos quatro elementos estaria mais próxima das manipulações com turntable de Philip Jeck e do que se faz em noise atualmente. Os barulhos, ainda que isoladamente sigam uma contiguidade, unidos apresentam cortes bruscos e uma proposital falta de sincronia. De qualquer maneira, Dream House Variations não me parece uma obra especialmente inovadora. Talvez seguindo todas essas exigências iniciais, seja possível vivenciar uma experiência musical acachapante e única. Pergunto-me apenas por que Whitman não fez, a partir disso, uma instalação sonora, podendo organizar o material da forma como pretende apresentá-lo. É claro que nem todos os interessados poderiam estar presentes, mas pelo menos, os que estivessem conheceriam a obra no seu intento original. (Thiago Filardi)

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Aproveitei a ocasião da indicação de Dream House Variations para reouvir Playthroughs, disco que marca, se não uma guinada na carreira de Keith Fullerton Whitman, ao menos um remanejamento do foco de composição para o ambient, o drone e para paisagens sonoras mais contemplativas. É um disco soberbo, que dependendo de como se olha pode abrir pontos de contato com coisas tão abrangentes quanto a música de Terry Riley para o filme Crossroads, de Bruce Conner, ou as composições de Selected Ambient Works 2 do Aphex Twin. É uma música com alto poder de imersividade, trabalhando minuciosamente as variações para que elas dêem relevo e brilho às texturas mas não modifiquem o senso de coesão do todo. O disco pode ser tudo, mas não é uma obra de contrastes: o ouvinte é convidado a se concentrar e ir cada vez mais para dentro do som que está ouvindo, como numa sessão de hipnose.

Ora, e qual a distância de Dream House Variations… Distância não na excelência do resultado (ainda que Playthroughs seja meio insuperável), mas nas estratégias de trabalhar a atenção do ouvinte. Dream House Variations é para ser ouvido com sons vindos da esquerda, da direita, da frente e de trás, simultaneamente. As variações a que o título se refere dizem respeito às múltiplas combinações possíveis: como cada os quatro cassetes têm durações diferentes, C-44, C-40, C-36 e C-32, a audição contínua e ininterrupta forçosamente implicará em um rearranjo das partes de cada fita e obrigatoriamente numa nova experiência auditiva, já que os tempos diferentes das fitas criam um novo todo. Em condições perfeitas (sincronização total ininterrupta entre as 4 fontes sonoras), a experiência daria 264 horas de música diferente. Mas já que nas liner notes o próprio Whitman sugere que o ouvinte acrescente seu input pessoal através de alterações de volume, de manipulação de velocidade e de fast-forwards e rewinds, as variações podem ser infinitas. Ainda assim, seria possível trabalhar a atenção do ouvinte no sentido de uma articulação sensorial hipnótica. Mas KFW age em outro sentido.

Dream House Variations, ouvido nas condições que seu compositor pede, é uma genial interpretação da ideia de composição ambient. Mas o próprio sentido do termo é desviado. Esse disco não é música para um ambiente nem música que através de seus elementos tenta evocar um ambiente. A espacialização criada pela organização das fontes sonoras, antes, instaura um ambiente. É todo o sentido do título: a música cria uma casa de sonhos, ela estabelece um espaço x e rodeia-o de uma série de ruídos, ruídos potencialmente acontecendo em algum fora, mas vindo de fora para dentro – não à toa, a capa da fita mostra o fora de uma casa, a janela ou clarabóia que permite que a luz e os ruídos externos apareçam. E ainda que os sons criados por KFW não emulem sons da natureza nem o burburinho da vida urbana (à exceção do field recording de um trem no final do cd4), é premente a ideia de um fora de onde brota o som.

A casa criada por Whitman, no entanto, poderia ser calminha, filtrar os sons de fora, ou pelo menos dosar harmoniosamente os sons visando a uma homeostase auditiva semelhante, em termos, à de Playthroughs. Ledo engano. KFW está empenhado em exercitar nossos sentidos de modo a nos reorientarmos continuamente ao longo da audição, e nos obrigar a mover dinamicamente através da casa, porque num momento o som daqui faz um barulho dos infernos, no outro fica mudo, num apresenta chiados informes, noutro os sonzinhos de sintetizadores modulares. É um pouco o oposto de Florian Hecker em Acid in the Style of David Tudor: lá ele utilizava articulações definidas de frequência e de distância de fonte sonora para criar efeitos de ilusão e desorientação espacial; aqui, as articulações são redefiníveis a cada instante (dependentes de qual parte da fita cada fonte sonora está executando), mas ainda assim as quatro fontes sonoras estabelecem com clareza uma ambiência que a obra designa como uma casa (dos sonhos). Uma casa feliz, como poderia dizer Siouxsie Sioux, caso ela goste de drone e noise.

É claro que, diante de um compositor tão meticuloso e criador de texturas tão apaixonantes que o colocam facilmente ao lado de um Kevin Drumm (o de Imperial Distortion, ao menos) ou de um Fennesz, é possível sentir falta da coesão, do controle e da suprema limpidez exercida por Keith Fullerton Whitman. Não que tudo isso não esteja aí. Está, mas está no conceito. Se ela dá origem a uma balbúrdia (uma balbúrdia magnífica, diga-se), é porque não se pode controlar os ruídos do mundo circundante. O que se pode é fazer sonoramente uma casa de sonhos em que os ruídos circundantes são todos ruídos de predileção. E habitar, ouvindo, a casa. (Ruy Gardnier)

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Publicado às 8 de julho de 2009 por em eletrônica, experimental, noise e marcado , , , .