Camarilha dos Quatro

Revista de crítica musical.

Konono n°1 – Congotronics (2004, Crammed Discs, Bélgica [Congo])

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Originalmente conhecido como L’orchestre folklorique T.P. Konono N°1 de Mingiedi (T.P. significa “tout puissant”), o Konono N°1 foi fundado em 1965 por Mawangu Mingiedi, um virtuoso do likembé (conhecido no Brasil como “kalimba” ou ainda “mbira”) e ex-caminhoneiro. Basicamente o som do grupo articula influências musicais do Congo e de Angola (principalmente da música da etnia Bazombo, situada na fronteira entre os dois países) com a criação de instrumentos a partir de material retirado do ferro velho e a microfonação tão rudimentar quanto criativa das kalimbas, resultando em uma sonoridade dançante e peculiar. A primeira gravação do grupo foi realizada em 1978: a faixa “Mungua-Muanga” foi registrada para a compilação Zaire: Musiques Urbaines a Kinshasa. Anos mais tarde, mais precisamente em 2004, o grupo assinou com o selo belga Crammed e lançou o álbum Congotronics, alcançando êxito de púbico e crítica e constando das listas dos melhores daquele ano. (BO)

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Se existe algum caso onde a problemática local/global alcança sua expressão máxima, isto ocorre com o trabalho do Konono N°1. De um ponto de vista pragmático, alguns artistas e álbuns podem variar entre representar os sintomas de uma época ou a mais contundente extemporaneidade. Tanto num caso como no outro, podemos identificar a “vanguarda”, a “inovação”, aquele elemento que faz com que cogitemos a possibilidade de que algo mais venha a acontecer para além do que já é conhecido e assimilado. Entre um e outro porém, ocorre uma terceira modalidade perspectiva: quando o artista exprime não uma corrente, não uma sonoridade, mas define um contexto, um marco que tomará definitivamente as práticas e valores de toda uma época. Me refiro a capacidade de articular inovações técnicas e procedimentos artísticos em um todo a partir do qual as futuras gerações poderão criar outras linguagens etc. O exemplo mais corriqueiro é o do dub jamaicano, que concerne à criação e proliferação de técnicas de gravação e reprodução que se espraiaram pelas mais diversas searas da música mundial. Ou ainda o jazz, isto é, o modo específico com o qual os negros americanos se apropriaram dos instrumentos das fanfarras militares conferindo-lhes outra utilidade. Haveria então um ingrediente de superação nestes caso, pois os artistas em questão não exprimiram contextos nem o superaram, se não que eles sobrevoaram as condições técnicas e artísticas alterando a percepção musical da região e, no caso do dub e do jazz, do mundo. Nem local, nem global, portanto, mas uma tensão entre aspectos locais e globais.

É evidente que este é o caso do Konono N°1, embora o alcance de sua pequena revolução se reduza a Kinshasa, onde proliferam bandas semelhantes. Desenvolvendo um sistema de amplificação para as kalimbas e microfones feito com peças de carro, e articulando a sonoridade peculiar que daí resulta às percussões em pele e aço, o Konono N°1 criou uma das sonoridades mais espantosamente criativas e enérgicas da década. Para alguns críticos e mesmo no site do selo Crammed podemos ler que se trata de uma sonoridade “electro-tradicional”, ou ainda uma espécie de “trance music”… É claro que por razões comerciais e jornalísticas, as pessoas tendem a identificar o desconhecido a partir do que é conhecido, e geralmente o fazem alocando o desconhecido ou no curral do “primitivo-tradicional” ou na benevolência eurocêntrica que se flagra surpresa e quase pergunta “como eles puderam?…” Mas a questão é que, a despeito das sonoridades elétricas que caracterizam o Konono N°1, eles nada tem a ver nem com Jimi Hendrix, nem com o Can, nem com trance, nem com “música eletrônica”, muito menos com a preconceituosa alcunha “proto-techno”… Sua sonoridade é irredutível a estas manifestações européias e representa uma realidade cultural da qual nada conhecemos, sobre a qual nada podemos falar – a menos que tenhamos alguém por aí especializado na etnia bazombo… Como eu não quero aqui vender o grupo, arrisco uma primeira opinião sobre a peculiaridade de seu som: trata-se de uma expressão musical que, tal como o Kasai All-Stars, condensa uma série de contribuições musicais advindas de etnias próximas àquele contexto. Se o resultado se assemelha ao trance, pouco importa, na medida em que este álbum traz uma sonoridade particular e mil vezes mais interessante que qualquer trabalho trance… E mesmo levando em consideração a alusão ao transe, me parece mais uma vez que as coisas desandaram: não se trata de uma música para o transe, mas para a dança. Tanto é que o grupo incorpora as dançarinas nas apresentações ao vivo… Enfim, repito: ao contrário do que foi amplamente alardeado pela imprensa, o Konono N°1 é um grupo irredutível às expressões musicais americanas e européias. Trata-se de outra coisa. E, mais grave: dentro desta outra “coisa” eles também representam algo além.

Deixando de lado o enfoque exagerado na criatividade técnica desses músicos, tratemos da matéria sonora. Certa impessoalidade no resultado final advém da forma de captação, in loco, e a forma de disposição do álbum. O que a matéria fonográfica não permite entrever, a matéria musical integra: trata-se de um álbum coeso, graças a algumas características que não sei se podem ser atribuídas ao gênio desses músicos ou se a cultura que integram. O ritmo, por vezes semelhantes a um afoxé (em “Kule Kule”), em outras faixas como um kuduro acústico (“Lufuala Ndonga” e “Mama Liza”); o timbre dos instrumentos de percussão de ferro e das três kalimbas precariamente eletrificadas, emitindo uma energia ao mesmo tempo rascante e suave; algumas chamadas musicais de kalimba ou percussão que iniciam e terminam as faixas, que provavelmente funcionam como marcas para fins de orientação dos músicos; a forma de dispor os versos, que obedecem aos critérios de pergunta (cantor) e resposta (coro), característicos de muitas manifestações musicais africanas; a prosódia desses versos, que num certo sentido recortam o ritmo e resultam em um suingue que se poderia chamar “matador”; e uma certa afeição a repetições melódicas, que talvez tenha estimulado nos críticos a comparação com o trance e com a música eletrônica em geral. Com esses elementos, podemos afirmar com segurança que o Konono N°1 extrai uma sonoridade única, comparável somente a outras sonoridades contíguas, muitas delas apresentadas na série Congotronics II. Talvez por isso, por esta ausência total de familiaridade com a tradição local, aliada ao talento e a energia do grupo, que o Konono N°1 me fascina e, ao que parece, todo o resto do mundo.

Nem sintoma, nem vanguarda, o Konono N°1 é mais que isso: é expressão singular que define um campo de ação para os habitantes do Congo e de Angola. Como o dub e o jazz, o grupo expandiu as possibilidades de uma expressão sonora que possivelmente permaneceria atrelada aos rótulos etnocêntricos de admiradores e detratores. Tal como Coxsone Dodd e Lee Perry, que com suas experimentações inusitadas criaram um campo de ação técnico e estético, Mawangu Mingiedi e sua turma também propiciam aos jovens de todo mundo um exemplo fundamental: de que a criação do novo emerge da experimentação contínua e obstinada, por vezes em meio à precariedade, mas sempre antenada com todos os elementos que constituem a perspectiva do criador. (Bernardo Oliveira)

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Querendo ou não, Congotronics é um marco para essa década. Primeiro porque foi o disco que proporcionou uma redescoberta da música africana por parte do ocidente e, segundo, porque lançou tendências estéticas tanto na seara pop, quanto na experimental. E há motivos para tal coqueluche: os instrumentos que tecem as melodias e, em certa medida, os ritmos do Konono N° 1, são os quissanges (também chamados de kalimbas e likembés), tipos de idiofones, feitos de lamelas metálicas e tocados com os polegares. Esses instrumentos, até então exóticos para ouvidos ocidentais, causaram grande impressão ao soarem extremamente modernos, com timbres quase eletrônicos, embora sejam artefatos ancestrais do Zimbabwe e já empregados em estúdio por grupos britânicos como King Crimson e Penguin Cafe Orchestra. Logo em seguida a Congotronics, o quissange passou a ser utilizado de forma exaustiva na música pop e, muitas vezes, inapropriadamente, como se seu uso fosse sinônimo de que determinados artistas ou produtores estivessem apenas sintonizados com o decurso da música contemporânea, e pouco interessados nas inúmeras possibilidades de manipulação e aplicação que qualquer instrumento possa oferecer.

Entretanto, o lançamento de Congotronics pelo selo belga, Crammed, gerou mais prós que contras, a exemplo do turbilhão de coletâneas e selos que começaram a surgir em todos os cantos da Europa a partir da segunda metade da década, lançando, relançando e apresentando gêneros e artistas novos, velhos, esquecidos e fascinantes de toda a extensão do continente africano.  E se um único álbum ensejou tudo isso, este não poderia ser menos maravilhoso: após cinco anos, o primeiro volume da Congotronics permanece um dos momentos mais altos da produção fonográfica dos anos 00. Tudo no trabalho do Konono é assombroso: desde os instrumentos utilizados, que incluem três quissanges elétricos, megafones, microfones caseiros e percussão feita de peças de carro, até a dinâmica dos próprios instrumentos e das vozes, que se revezam e se sobrepõem com muita agilidade, num embalo contagiante. As pequenas sutilezas nos tons de baixo e a variedade incrível de timbres oferecidos pela percussão são impressionantes se tratando de um grupo que utiliza instrumentos rudimentares e improvisados. Numa década que ficou marcada pela inserção de novas ferramentas digitais de composição e edição na música, quem causou uma das grandes transformações estéticas foi o Konono, com seus instrumentos caseiros e milenares. (Thiago Filardi)

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O que dizer da descoberta de Konono Nº1, há quase cinco anos atrás? (Sim, porque fui correr atrás do grupo depois de vê-lo em infinitas listas de melhores do ano feitas ao final de 2005.) Um vulcão seria uma metáfora apropriada. Uma parte percussiva em que o que prevalece são os sons de lata sendo batida, uma dinâmica calorosa de canto e coro em resposta, apitos, andamento apressado, e sobretudo a misteriosa sonoridade desses preciosos instrumentos, os likembés tão comentados por suas possibilidades musicais e pela prodigiosa gênese que envolve astúcia e acaso (e, acima de tudo, sensibilidade). Mas vamos deixar isso pra depois.

Porque primeiro de tudo, há o êxtase. O êxtase tão bem representado pela música de abertura de Congotronics, “Lufuala Ndonga”, uma explosão de sons que a percepção inicialmente encontra dificuldade de juntar, tanto pela entrada da voz que se antecipa ao tipo de entrada tradicional quando pelos detalhes rítmicos (ou melódico-rímicos, já que mesmo os elementos melódicos assumem uma dimensão rítmica pregnante). Mas rapidamente a sensibilidade vai se orientando nessa profusão de sons imprevistos, inesperados talvez principalmente pela união de sonoridades até então consideradas divergentes: os likembés com uma impureza amplificada que sugerem o ápice de uma vanguarda exploratória da eletrônica, como os Silver Apples ou hoje o Black Dice, e uma contagiante batucada com toques requintados, mas guiada em especial por um insidioso som de lata batida, metálico, que se combina à perfeição com o som alienígena que vem dos likembés na construção de um som ao mesmo tempo direto, cru e incomum. Mas “Lufuala Ndonga” tem mais do que esse shape sonoro a ser elogiado. Existe também a estrutura da composição, que alterna os momentos cantados, em efusiva troca de voz solo masculina e coro feminino, com os momentos instrumentais em que os likembés assumem o controle.

Quanto a eles, resta dizer que Congotronics não é apenas o testemunho de uma invenção, mas a prova de uma enorme sabedoria em sua utilização, com fraseados curtos e precisos, eventualmente recorrendo à repetição enfática de duas notas, que fornecem um intenso apelo rítmico. A descoberta do instrumento é fenomenal, mas ela não pode ofuscar que é a sábia utilização dele o determinante no som do Konono Nº1.

Como com os Ramones, são os momentos de mais energia aqueles que mais cativam o ouvinte: além de “Lufuala Ndonga”, “Mama Liza” e “Ungudi Wele Wele” garantem festa completa e total deleite auditivo. Igual aos Ramones, o principal desafio a ser evitado é o risco de homogeneidade inerente ao projeto. Em resposta a isso, Congotronics sabe dosar a ordem das faixas alternando os andamentos, mas mantendo a mesma vibração. Entre as menos agitadas, destaque para “Paradiso”, que ao invés das percussões costumeiras utiliza uma bateria muito inspirada, algo soul, que aproveita o andamento mais lento para criar uma levada envolvente que rivaliza, em modo mais calmo, com a balbúrdia dos habituais ataques percussivos das outras faixas. Tudo isso serve para criar um disco impressionante, inesperado e profundamente inventivo, certamente dos mais imponentes e deliciosos dos últimos anos. (Ruy Gardnier)

2 comentários em “Konono n°1 – Congotronics (2004, Crammed Discs, Bélgica [Congo])

  1. Spirito
    10 de agosto de 2009

    Este instrumento aí eu manjo bem. Vivo fazendo e ensinando a fazer direto no Musikfabrik. Foi um ‘must’ entre a negraiada escrava da Corte do Rio de janeiro. Teve um época que todo escravo tinha uma kalimba pendurada na cintura, igual IPod.

    O papo do Ruy Gardnier, apesar de longo pra dedéu é bem sacado também. Agora o que me ocorre dizer e que (não sei porque pouca gente se dá conta disso) esta musica dos caras, como outras músicas ‘folclóricas’ da África soam modernas porque trafegam num mistério esquisito que é a atemporalidade dos sistemas musicais ancestrais nos quasi se inserem ou seja, é aí, quando escutamos estas coisas ‘exóticas’ que a gente tem a noção exata de que modernidade em música é um conceito absolutamente relativo.

    Não foi a toa mesmo que o conceito ‘Música Popular’ nasceu na África.

  2. Valdemar Almeida
    19 de outubro de 2009

    Há uns dois anos, o Konono No.1 me fez olhar com mais atenção para a música que se vai fazendo na África. Foi por isso com muito prazer que li sua matéria sobre meu álbum preferido deles, o “Congotronics”, que vai buscar influências às linguagens de raiz africana. Para ouvir boa música africana, vale a pena dar um salto a http://cotonete.clix.pt/

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